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«Não se deve querer fazer uma vez mais aquilo que a Natureza já fez perfeito. Não se deve querer parecer verdadeiro pela imitação das coisas.»
George Braque in «Cahiers de G. Braque»

terça-feira, 28 de maio de 2019

Bateria do Pico da Castanheira

18 de maio, 2019 (Pela colina com os Urban sketchers). Com Alexandra Baptista e José Artur.
Subida ao Pico da Castanheira, aqui para as bandas dos Arrifes. Nunca cá tinha vindo. Vivemos numa pequena ilha, queixamo-nos da limitação, sentimo-nos, por vezes, circunscritos, mas na verdade nem conhecemos tudo aquilo que nos rodeia.
Subimos por um atalho cheio de frescura, até ao cimo da colina e, bem lá no topo, foi um deslumbramento. Avista-se a cidade em toda a sua extensão, desde a zona da Nordela, a Poente, dominada pela pista do aeroporto, passando pela doca, cortada a meio pela Torre do Solmar e diluindo-se, a Nascente, para as bandas da Lagoa, já muito moderna com as suas torres de apartamentos e, ao fundo, a minha Serra da Barrosa, hoje com a cabeça perdida nas nuvens, como eu. Olhando melhor, ainda avistei o torreão do nosso Liceu, vigia permanente, em tempos, dos navios de transporte da laranja, na época do Barão de Fonte Bela, e o Alto da Mãe de Deus, com a sua igrejinha inocente, um tanto perdida numa cidade que conheceu bem mais pequenina.
O Pico da Castanheira é uma elevação, a Norte de Ponta Delgada, onde se criou um dispositivo de defesa do porto da cidade, durante a Segunda Guerra Mundial. Lá se construiu um complexo subterrâneo que servia de aquartelamento, artilhado com três peças Krupp, que ali foram instaladas em setembro de 1940.
Começámos por uma visita guiada, seguindo a luz de fortes lanternas, a essas antigas instalações, frias e labirínticas, todas em cimento, um autêntico bunker que nos arrepia e oprime.
Uma vez cá fora, respirei fundo, aliviada pelo vento fresco e pelo sol que me envolveu. A ilha hoje está igual a si mesma, com o mar em cinza prata, pintalgado de onde a onde por uns laivos tímidos de azul.
Como eu amo esta cidade e a minha ilha! É um amor cheio de contradições, como o são sempre os amores, dividida que estou entre a atração e a fuga; o partir e o ficar; ora vendo este mar como ponte que une, ora como prisão que nos cerca.
O cheirinho a hortelã silvestre e a toada dos chocalhos das vacas, que se ouve no cimo da colina, transportam-me ao Poço do Cavalo. Agora penso que ainda não falei dele neste meu Diário e isso é desconcertante para mim. Às tantas lembramo-nos de que há coisas que nos marcaram tanto, que não queremos tocar-lhes para que não se esfumem e percam a forma com que ficaram gravadas dentro de nós.
O Poço do Cavalo é um desses lugares que pertencem à mitologia da Infância. No começo era um pasto atravessado por uma ribeirinha que se precipitava em cascata por uma parede rochosa, num declive do terreno, formando uma piscina natural, de água cristalina de tão gelada, onde tomávamos banho em crianças.
Meu Pai comprou este terreno tinha eu cinco anos e, usando a imaginação e a sensibilidade, transformou-o num pequeno paraíso único e nosso.
Ali ergueu um casinha e pôs-lhe portadas vermelhas com corações abertos. O ribeiro passava a três metros da cozinha e sobre ele meu Pai construiu, com as suas mãos, pequenas pontes em arco, feitas de toros de criptoméria. Alindou o terreno com árvores e flores. Fez crescer madressilva pelos muros de pedra e as noites tornaram-se irresistíveis, cheias de aromas e povoadas de espíritos bons. Na porta de entrada, num azulejo azul e branco, lia-se, escrita pela mão do seu Mestre e amigo Ruy Galvão de Carvalho, uma quadrinha singela, que sempre me encantou e encerrava o espírito do lugar:
Um ribeiro, ao longe o mar;
Campos vastos como o céu.
Entra, uma casa te espera
E mais a Graça de Deus.
Este lugar era assim, aqui pincelado com palavras doces e fugazes. Por isso meu Pai, sempre que podia, a pretexto de ir aparar a relva, buscava nesse refúgio um refrigério para a alma e para os olhos.
A casita não tinha água canalizada, nem luz elétrica. Pelo Verão, ali passávamos uns dias, e vivíamos uma outra vida. Imagino que, para a minha Mãe, habituada a gerir uma casa onde nada faltava, seria complicada esta temporária ancestralidade, mas para nós, crianças, era um fascínio aquele regresso às origens. De dia, era o milagre da vida. Bebíamos leite acabado de ordenhar e perdi a conta dos cães, bezerros e cabritos que vimos nascer. Íamos à ribeira buscar água e à noite por ali ficávamos os cinco, à luz de candeeiros de petróleo, em conversas mornas e embaladoras que nenhum registo pode fixar. Ou meus pais liam-nos passagens de algum livro que estava sempre à mão.
Lembro-me bem do deitar. Minha mãe punha-nos botijas quentes nas camas para retirar a sensação de humidade e adormecíamos a ouvir as rãs e os grilos, mais o cantar eterno da ribeirinha por entre as pedras, a hortelã e as flores rosadas dos cardos que cresciam junto às margens.
Pergunto-me porque é que ainda não tinha posto por aqui estas memórias. Talvez porque, por muito que diga, nunca conseguirei passar para o papel todo aquele universo de cheiros, sons, afetos e sentires que nos envolviam naquele lugar, por esses dias já quase perdidos, de tão distantes.
Foi disto que me lembrei hoje, e de muito mais que é indizível, enquanto estava sentada na relva desta colina e me deixei invadir pelo cheiro da hortelã e pelo ruído dos chocalhos, olhando aqui de cima esta cidade onde nasci, pacífica e tranquila, estendendo-se pela paisagem da ilha.
E que saudade dolorosa senti desse tempo em que tudo parecia tão certo!
Por aqui, sentaram-se também os meus companheiros de passeio, rodeados de aguarelas, lápis de cor, cadernos e pincéis para fazerem um registo deste lugar. A Alexandra Batista, naquele seu jeito aparentemente plácido e tranquilo e com a sua visão de artista, vai registando, numa linguagem tão diferente da minha, aquilo que se oferece ao nosso olhar. E de repente surge no seu caderno de esboços, em traços espontâneos, que o domínio da técnica não obscurece, toda a paisagem que se espraia na nossa frente, com pormenores que eu não tinha visto antes, porque me entreguei às memórias e deixei de ver este espaço para passar a ver outro, enquanto ela vai registando o que os olhos e a experiência lhe ditam e lhe tocam.
Há momentos na vida que valem a pena.
“Dorme e sonha minha bela/embalada ao som do Mar”, disse Antero sobre a sua/minha ilha. E isto faz tanto sentido dentro de mim, neste momento em que aqui estou, mirando o porto mergulhado no mar, e sentindo, como sempre, que sou muito da ilha, mas que tenho sede de distância, porque há tanto para sentir e tanta humanidade para conhecer.
Maria João Ruivo

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